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sábado, 6 de outubro de 2007

Memória e História Douradense

Considerações acerca da memória douradense[1]

Mercolis Alexandre Ernandes[2]

Memória ou História? Foi a partir deste questionamento provocado pela disciplina de Metodologias da História que esta velha briga me arrebatou. Pára o mundo que eu quero descer foi a primeira coisa em que pensei, e diante do problema de definição teórica sobre o trato de uma de minhas fontes, fui pensar. A Monografia do Município de Dourados, escrita em 1965 por Ercília de Oliveira Pompeu foi o documento responsável pela pergunta latente. Pensar sobre estas definições tão cerradas sobre como analisar ou guardar o passado, me levou, pelos caminhos da história, aos textos de Le Goff, Halbwachs, Guarinello, Betoni.

Maurice Halbwachs, a partir do livro A memória Coletiva publicado em 1950, estabelece distinções bastante precisas entre memória individual, memória coletiva e memória histórica, e ainda considera como formas de registrar o passado, os documentos oficiais fornecidos pelo presente e as narrativas individuais e coletivas que permeiam a consciência do grupo que as mantém. Neste sentido, nossa fonte é memória individual quando considerada como a escrita de uma cidadã douradense, uma voz credenciada pela ascendência pioneira que escrevera para que nada se perdesse no tempo, conforme analisou BETONI (2002). A narrativa de Dona Ercília, enquanto memória, nos revela um ponto de vista, visto de um ponto – o da autora, que privilegia conceitos como civilização e progresso enquanto elementos propulsores do desenvolvimento do município, em oposição à barbárie – entende-se neste caso a população indígena. Escrito trinta anos depois da fundação do município, o texto toca o passado pelo lado de cá num contexto político nacional conturbado, e expõe o pioneiro como herói (e vale lembrar que o pai dela era um) que enfrentando toda sorte de sacrifícios e privações chegou neste deserto e, com a civilização plantou o marco do progresso. Lembrado constantemente, o pioneirismo é enaltecido, pois em função deste, Dourados, num futuro confiante, seria lindo oásis do Brasil[3].

A intenção do documento é bastante clara. Ele guarda os fatos considerados pela autora como importantes para a história da cidade, para que as gerações futuras pudessem retomar sua origem. Dona Ercília escreveu a monografia por ocasião de um concurso da Secretaria de Educação do município, e venceu. Publicado na íntegra, o texto se tornou documento oficial, e seus contemporâneos continuaram, a partir dele a produzir memória, mas agora coletiva. Tão coletiva quanto histórica, haja vista que essa visão passou a ser compartilhada pelo grupo e se difundiu na sociedade como verdade, afinal a autora, antes de qualquer coisa, é uma testemunha ocular dos acontecimentos que reuniu as informações por ela consideradas mais importantes para a formação da história local.

Para o teórico falante, a fonte em questão é, portanto sem dúvida, memória.

Por outro lado considerar uma fonte que fala a partir de três pontos – individual, coletivo e histórico, como memória pura, me pareceu insuficiente.

Estas considerações intempestivas trouxeram à baila outra questão: como perceber a história? Chamei para a discussão Jacques Le Goff em Memória e História. Ligado a Escola dos Anales, que desde sua primeira geração já ampliara a noção de fontes, Le Goff, propõe a História como a forma científica da memória. É por meio do ofício do historiador, no recortar o tempo e no selecionar as fontes que produzimos conhecimento. O que resistiu à ação do tempo, não se configura como o conjunto daquilo que existiu no passado, e sim como uma escolha efetuada pelos autores. Sendo assim, tomamos como verdade uma parcela do real, do acontecido, e consideramos como fato histórico às informações que nos permitem explicar as situações do presente[4].

Reconstruir o passado a partir dos problemas, conceitos e modelos que o presente nos disponibiliza, significa dizer, em outras palavras que a história é filha de seu tempo, e como lembra Febvre, as fontes são criadas, inventadas e fabricadas pelo historiador. De toda maneira, as fontes não são neutras, e nem podem ser utilizadas como argumento de autoridade. Assim, para Pierre Bourdieu, as representações podem “contribuir para produzir aquilo por ela descrito ou designado, quer dizer, a realidade objetiva” (BOURDIEU, 1989, p. 114). Para Roger Chartier, os discursos “produzem estratégias e práticas sociais, que (...) tendem a impor uma autoridade a custa de outra, por elas menosprezadas, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos as suas escolhas ou condutas” (CHARTIER, 1990). Muito embora, não neutras, as fontes tornam-se importantes para a escrita da História, na medida em que é ela que nos fornece representações do fato, que devem ser lidos e traduzidos, cabendo ao pesquisador a decisão do referencial teórico a ser utilizado. Como já mencionamos, as fontes por si só, não são capazes de argüir com autoridade absoluta, visto que elas já são frutos de uma seleção, feita pelo pesquisador, considerando elementos de sua formação pessoal, e tornando a análise verossímil, mas não incontestável.

Produzimos assim, verdades relativas, válidas para seu tempo. E não quero aqui entrar no mérito da questão e definir quem é mais verdadeiro, a memória ou a história. Quero apenas registrar que as entendo como justaposição, na qual uma contribui com a outra, e juntas podem nos deixar ainda mais próximo daquilo que aconteceu e pensaram sobre tempos não tão distantes. Retomando Le Goff, são duas histórias diferentes, uma do historiador e outra da memória.

A história, enquanto corpo orgânico de conhecimento, conforme estabelecido por R.G. Collingwood pode de todo modo, reescrever o passado de maneira particular, e concluo sinalizando que ao olhar para esta fonte pela lente da história, podemos apontar as distorções, os exageros e os esquecimentos produzidos pelos interesses particulares que animam as memórias coletivas.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

COLLINGWOOD, R.G. A idéia de História. Lisboa: Editorial Presença, 1972.

BETONI, Walteir Luiz. Dourados: entre a memória e a história. Dissertação de Mestrado. Dourados: UFMS, 2002.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989.

CHARTIER, Roger. História Cultural: práticas e representações. São Paulo: EDUSP, 2002.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e história científica. Minas Gerais: 1993.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996.



[1] Texto apresentado como trabalho de conclusão da disciplina Metodologias da História, ministrada pelo Prof. Dr. Cláudio Alves Vasconcelos no primeiro semestre de 2007.

[2] Mestrando em História/ UFGD.

[3] Excerto do Hino à Dourados.

[4] Discussão também travada por BETONI.