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sábado, 6 de outubro de 2007

Memória e História Douradense

Considerações acerca da memória douradense[1]

Mercolis Alexandre Ernandes[2]

Memória ou História? Foi a partir deste questionamento provocado pela disciplina de Metodologias da História que esta velha briga me arrebatou. Pára o mundo que eu quero descer foi a primeira coisa em que pensei, e diante do problema de definição teórica sobre o trato de uma de minhas fontes, fui pensar. A Monografia do Município de Dourados, escrita em 1965 por Ercília de Oliveira Pompeu foi o documento responsável pela pergunta latente. Pensar sobre estas definições tão cerradas sobre como analisar ou guardar o passado, me levou, pelos caminhos da história, aos textos de Le Goff, Halbwachs, Guarinello, Betoni.

Maurice Halbwachs, a partir do livro A memória Coletiva publicado em 1950, estabelece distinções bastante precisas entre memória individual, memória coletiva e memória histórica, e ainda considera como formas de registrar o passado, os documentos oficiais fornecidos pelo presente e as narrativas individuais e coletivas que permeiam a consciência do grupo que as mantém. Neste sentido, nossa fonte é memória individual quando considerada como a escrita de uma cidadã douradense, uma voz credenciada pela ascendência pioneira que escrevera para que nada se perdesse no tempo, conforme analisou BETONI (2002). A narrativa de Dona Ercília, enquanto memória, nos revela um ponto de vista, visto de um ponto – o da autora, que privilegia conceitos como civilização e progresso enquanto elementos propulsores do desenvolvimento do município, em oposição à barbárie – entende-se neste caso a população indígena. Escrito trinta anos depois da fundação do município, o texto toca o passado pelo lado de cá num contexto político nacional conturbado, e expõe o pioneiro como herói (e vale lembrar que o pai dela era um) que enfrentando toda sorte de sacrifícios e privações chegou neste deserto e, com a civilização plantou o marco do progresso. Lembrado constantemente, o pioneirismo é enaltecido, pois em função deste, Dourados, num futuro confiante, seria lindo oásis do Brasil[3].

A intenção do documento é bastante clara. Ele guarda os fatos considerados pela autora como importantes para a história da cidade, para que as gerações futuras pudessem retomar sua origem. Dona Ercília escreveu a monografia por ocasião de um concurso da Secretaria de Educação do município, e venceu. Publicado na íntegra, o texto se tornou documento oficial, e seus contemporâneos continuaram, a partir dele a produzir memória, mas agora coletiva. Tão coletiva quanto histórica, haja vista que essa visão passou a ser compartilhada pelo grupo e se difundiu na sociedade como verdade, afinal a autora, antes de qualquer coisa, é uma testemunha ocular dos acontecimentos que reuniu as informações por ela consideradas mais importantes para a formação da história local.

Para o teórico falante, a fonte em questão é, portanto sem dúvida, memória.

Por outro lado considerar uma fonte que fala a partir de três pontos – individual, coletivo e histórico, como memória pura, me pareceu insuficiente.

Estas considerações intempestivas trouxeram à baila outra questão: como perceber a história? Chamei para a discussão Jacques Le Goff em Memória e História. Ligado a Escola dos Anales, que desde sua primeira geração já ampliara a noção de fontes, Le Goff, propõe a História como a forma científica da memória. É por meio do ofício do historiador, no recortar o tempo e no selecionar as fontes que produzimos conhecimento. O que resistiu à ação do tempo, não se configura como o conjunto daquilo que existiu no passado, e sim como uma escolha efetuada pelos autores. Sendo assim, tomamos como verdade uma parcela do real, do acontecido, e consideramos como fato histórico às informações que nos permitem explicar as situações do presente[4].

Reconstruir o passado a partir dos problemas, conceitos e modelos que o presente nos disponibiliza, significa dizer, em outras palavras que a história é filha de seu tempo, e como lembra Febvre, as fontes são criadas, inventadas e fabricadas pelo historiador. De toda maneira, as fontes não são neutras, e nem podem ser utilizadas como argumento de autoridade. Assim, para Pierre Bourdieu, as representações podem “contribuir para produzir aquilo por ela descrito ou designado, quer dizer, a realidade objetiva” (BOURDIEU, 1989, p. 114). Para Roger Chartier, os discursos “produzem estratégias e práticas sociais, que (...) tendem a impor uma autoridade a custa de outra, por elas menosprezadas, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos as suas escolhas ou condutas” (CHARTIER, 1990). Muito embora, não neutras, as fontes tornam-se importantes para a escrita da História, na medida em que é ela que nos fornece representações do fato, que devem ser lidos e traduzidos, cabendo ao pesquisador a decisão do referencial teórico a ser utilizado. Como já mencionamos, as fontes por si só, não são capazes de argüir com autoridade absoluta, visto que elas já são frutos de uma seleção, feita pelo pesquisador, considerando elementos de sua formação pessoal, e tornando a análise verossímil, mas não incontestável.

Produzimos assim, verdades relativas, válidas para seu tempo. E não quero aqui entrar no mérito da questão e definir quem é mais verdadeiro, a memória ou a história. Quero apenas registrar que as entendo como justaposição, na qual uma contribui com a outra, e juntas podem nos deixar ainda mais próximo daquilo que aconteceu e pensaram sobre tempos não tão distantes. Retomando Le Goff, são duas histórias diferentes, uma do historiador e outra da memória.

A história, enquanto corpo orgânico de conhecimento, conforme estabelecido por R.G. Collingwood pode de todo modo, reescrever o passado de maneira particular, e concluo sinalizando que ao olhar para esta fonte pela lente da história, podemos apontar as distorções, os exageros e os esquecimentos produzidos pelos interesses particulares que animam as memórias coletivas.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

COLLINGWOOD, R.G. A idéia de História. Lisboa: Editorial Presença, 1972.

BETONI, Walteir Luiz. Dourados: entre a memória e a história. Dissertação de Mestrado. Dourados: UFMS, 2002.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989.

CHARTIER, Roger. História Cultural: práticas e representações. São Paulo: EDUSP, 2002.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e história científica. Minas Gerais: 1993.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996.



[1] Texto apresentado como trabalho de conclusão da disciplina Metodologias da História, ministrada pelo Prof. Dr. Cláudio Alves Vasconcelos no primeiro semestre de 2007.

[2] Mestrando em História/ UFGD.

[3] Excerto do Hino à Dourados.

[4] Discussão também travada por BETONI.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Inquietações Acadêmicas: considerações acerca da Revolução Francesa[1]

Mercolis Alexandre Ernandes[2]

ILUMINISMO E REVOLUÇÃO

“Curiosamente, toda a argumentação teórica da aristocracia para recusar as reformas e atacar o Absolutismo baseava-se no discurso iluminista, isto é, utilizava-se da linguagem liberal dos filósofos com suas noções sobre a liberdade, a representatividade do poder e o direito de propriedade. Mas não se tratava tão somente de uma apropriação, por parte da aristocracia, dos conceitos políticos do Iluminismo, e sim de uma verdadeira contracorrente de ideologia aristocrática cujo expoente mais ilustre e ao mesmo tempo mais “enrustido” foi Montesquieu. O que demonstra, por um lado, que o pensamento iluminista era tão universal que contaminou ideologicamente até mesmo a aristocracia, e, por outro, que não se tratava simplesmente de uma teoria construída ad hoc pela e para a burguesia tomar o poder.”[3]

Partindo do pressuposto da universalidade do Iluminismo, que nas palavras de Modesto Florenzano contaminou a aristocracia no contexto revolucionário francês da segunda metade do século XVIII, podemos considerar que ele atua também, como projeto político, cuja realização esteve a cargo da sociedade burguesa capitalista. Ele passa a ser além de uma crítica deísta sobre a existência, a possibilidade de liberdade para o terceiro estado.

A partir das discussões sobre razão, não submissão a ideologias, trânsito entre classes e oportunidades iguais, o Iluminismo atinge a política, nos permitindo analisar sua presença nas ações revolucionárias francesas, como produto e não causa[4]. Produto, pois até 1776 os fundamentos da nova forma de ver e explicar o universo acreditava que liberdade estava na reflexão em torno da equidade jurídica, transformando pessoas em cidadãos, e logrando a elas mesmas, a responsabilidade de conquistarem melhores condições de vida. Como por exemplo, a Constituição Norte Americana.

Isto posto, há que se considerar a existência da Monarquia Francesa, enquanto estrutura feudal, que numa crise financeira viu a única possibilidade de superação dos obstáculos, a taxação de impostos extras sobre a aristocracia e o clero que, reagiram rapidamente, além de fatores climáticos que proporcionaram a migração de boa parte da população rural para as cidades. No meio urbano, a falta de estrutura oferecia péssimas condições de trabalho, e a exploração era constante, haja vista a grande oferta de mão-de-obra. Sendo assim, os franceses, há muito explorados pelo Antigo Regime, precisavam muito mais do que igualdade jurídica, de liberdade. Nesse sentido, no mesmo momento em que a França vivia uma revolução, o Iluminismo, preconizado anteriormente, estava sendo ressignificado em território Bourbon.

Esse processo obriga-nos a concordar com Florenzano, no ponto de vista da universalidade dos conceitos iluministas. Pois, ao analisar a Aristocracia, principal agente da Revolução de 1787, observamos que ela valeu-se de propagandas acerca da liberdade da pessoa em torno de sua existência, ao mesmo tempo em que pretendia garantir sua representatividade no poder, assumindo o discurso do direito de propriedade. Isso nos mostra que essa apropriação de posturas mais “liberais” é o resultado de um projeto político frustrado, de apoio e manutenção do Absolutismo, fazendo com que novas maneiras de sobrevivência fossem assumidas, a ponto de limitar alguns conceitos, como o de liberdade, utilizando apenas as lentes do caleidoscópio iluminista, que lhes eram úteis.

A utilização desses ideais, adaptados às propostas de cada grupo político, confronta-se com a teoria de que toda classe revolucionária possui um projeto novo, transformador. Tornando a burguesia um agente muito mais reformador do que revolucionário. Reformador, na medida em que amplia, após inúmeros acontecimentos políticos, a liberdade, tornando o homem, depois de livre, “igual” em termos jurídicos, econômicos e sociais, e passível ainda de experiências fraternas.

Portanto, se há que se estabelecer alguma relação entre a Revolução e o iluminismo, temos depois de um confronto, uma dialética entre eles. De outra maneira, não conseguiríamos entender ou até mesmo explicar, de modo algum, os atos despóticos e aterrorizantes verificados ao longo do processo.

PROJETOS POLÍTICOS

Após a promulgação da Constituição de 1791, a França assumiu um regime político que limitou os poderes da coroa, tranformando-a numa Monarquia Constitucional. A Constituição, seguiu a orientação de Montesquieu que separou os poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário, e fez dos civis completos cidadãos. Porém, ser cidadão ainda não lhes garantiu pleno exercíco de todas as atividades propostas pelo novo regime, estes foram subdivididos em ativos e passivos[5], restringindo somente aos ativos, ou seja, os que detinham condiçõe econômica diferenciada e propriedades, a participação política. Apesar de ter limitado o poder do rei, este ainda podia nomear seus ministros, garantindo a representatividade da monarquia. O texto constitucional também colocou fim ao feudalismo, e nacionalizou os bens da igreja, sinalizando o advento de uma sociedade burguesa e capitalista, em detrimento de outra, feudal e aristocrática.

Esse projeto político não teve muita eficiência, tampouco conseguiu se sustentar. Muitos setores queriam continuar com a revolução até a extinção por completo da monarquia. Os nobres, assustados, procuram apoio em outros Estados Absolutistas, a fim de se reorganizarem para uma revanche armada. O acolhimento dos emigrados e a Declaração de Pillnitz[6] desencadeou um processo de enfurecimento na população por intromissão nos assuntos nacionais, culminando na execução da Família Real.

E a República, o que propunha? Durante a fase jacobina, as reformas foram da economia à cultura passando pela educação. Os direitos do homem e do cidadão foram garantidos, numa curiosa diferenciação entre os dois conceitos. As questões militares foram beneficiadas com a criação do Exército Revolucionário, do Comitê de Salvação Pública, do Comitê de Salvação Nacional e o Tribunal Revolucionário. Com uma proposta mais ampla atingindo vários setores da população, a República Jacobina atendeu às necessidades dos franceses revoltosos. Muitas vezes, a força e o terror estiveram presentes. Opositores inquietos eram severamente punidos com a morte em pró da manutenção da ordem e do regime. O uso excessivo da violência e manobras políticas erradas, como a execução de Danton, somado ao descontentamento burguês com o congelamento dos preços, fez com que o projeto político burguês fosse reativado. E, nos girondinos, estava a maior possibilidade de realização, ao menos, no que tangia aos interesses da alta burguesia em sua versão mais conservadora. Na versão girondina da República, a do Diretório, centralizou o poder no Diretório, deu mais visibilidade aos militares pelas campanhas externas, e subdividiu o legislativo entre Quinhentistas e Anciãos. A crise financeira enfrentada e a anulação das conquistas sociais jacobinas alteraram significativamente o quadro político. Os membros do Diretório enfrentavam oposições de todos os lados. A crise política se agravou, e permitiu que Napoleão Bonaparte chegasse ao poder.

De todo modo, o que precisamos enfatizar, é que muito mais do que transformação política radical, a burguesia capitalista da França do século XVIII proponha uma adequação do sistema ao seu modo. Relendo algumas das velhas estruturas, conservando aspectos primordiais e ressignificando seus conceitos a fim de convencer a todos de que seu projeto era o mais viável. Atentos às transformações do pensamento mundial, aristocratas e burgueses, habilmente souberam como manipular o pensamento político europeu setencetista.

BIBLIOGRAFIA

BLANNING, T.C.W. Aristocratas versus burgueses? A Revolução Francesa. São Paulo: Ática, 1990.

FLORENZANO, Modesto. As Revoluções Burguesas. São Paulo: Brasiliense, 1986.

MOTA, Carlos Guilherme. A Revolução Francesa de 1789-1799. São Paulo: Ática, 1990.

Sites consultados:

www.wikipedia.org.br

www.suapesquisa.com

www.culturabrasil.org



[1] Texto apresentado à disciplina de História Contemporânea I, ministrada pelo Prof. Dr.º Protásio Paulo Langer, no curso de História da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, como forma de avaliação.

[2] Acadêmico do quarto ano da graduação em História.

[3] FLORENZANO, Modesto. As Revoluções Burguesas. São Paulo: Brasiliense, 1986.

[4] Conforme análise de T.C.W. Blanning em, BLANNING, T.C.W. Aristocratas versus burgueses? A Revolução Francesa. São Paulo: Ática, 1990.

[5] O Grupo dos passivos era composto por mulheres, trabalhadores e desempregados.

[6] Assinada em 1791, pelos países que apoiavam a França na restauração da monarquia, principalmente a Áustria.

MOTTA, Márcia Maria Menendes. A Primeira Grande Guerra. In: FILHO, Daniel Aarão Reis. O Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

A Primeira Grande Guerra Mundial é sem dúvida o resultado do confronto de rivalidades entre quatro principais potências mundiais: França, Inglaterra, Alemanha e Rússia. Apesar dos diferentes estágios de industrialização, esses países sofreram ao mesmo tempo os efeitos do avanço do capitalismo industrial desencadeado no território europeu a partir da segunda metade do século XVII e todo o século XIX. A expansão imperialista desses países obtém como resultado a guerra.

Isto posto devemos considerar o nível de industrialização de cada país. Na Inglaterra, a Revolução Industrial havia modernizado as máquinas a vapor e a indústria têxtil, modernização que transformou profundamente a sociedade inglesa. O fechamento dos campos fez com que a população migrasse para as cidades em busca de empregos, aumentando o número de mão-de-obra disponível. O consolidado mercado interno inglês, acelera o crescimento econômico, na medida em que as cidades estavam aptas a receber esses migrantes para trabalhar na indústria. No que se refere ao mercado externo, a Inglaterra era considerada a “senhora dos mares”, com uma relação ultramarina de dominação econômica de outros povos, em função das guerras de colonização travadas anteriormente. Nesse sentido, a Inglaterra foi vítima de seu próprio pioneirismo. Outras potências econômicas tornavam-se concorrentes de maneira rápida, pois não precisaram passar por todos os processos de desenvolvimento até atingirem o mesmo nível de industrialização da Grã-Bretanha, desse modo esses países podiam “pular etapas” desse desenvolvimento atingindo o ápice nessa concorrência por mercados de consumo para seus produtos.

A Alemanha em menos de uma geração tornou-se um país unificado e forte, e desenvolveu um planejamento cuidadoso para modernizar-se. Formou cartéis, favoreceu conglomerados econômicos, e investiu na educação. Em pouco tempo, a Alemanha tinha um alto número de mão-de-obra especializada cientifica e tecnologicamente deixando para trás o atraso.

A França, outra potência, embora com a maior parte de sua população no campo, possuía algumas indústrias, mas que só atendiam uma pequena parcela da população que vivia nas cidades, além do que a concorrência com a gigante Inglaterra desestimulava qualquer investimento em nível de maior produção de produtos industrializados. Considerando isso, a França opta por investir na qualidade dos seus produtos, aproveitando-se da idéia propagada mundialmente de que, a cultura francesa era sinônimo de beleza e bom gosto. Com capital inglês a França construiu estradas de ferro, consolidou seu mercado nacional e investiu em locais mais favoráveis.

A Rússia, por sua vez, não possuía uma força industrial, visto que cerca de 79% da população vivia no campo, e apresentava-se como um país de grandes contrastes, coexistindo com indústrias modernas, e sociedades agrárias miseráveis. Fato é que a Rússia era o país mais populoso da Europa, com um Estado autoritário e militarizado, cuja industrialização dependia necessariamente do investimento estrangeiro, obrigando o Estado a atuar como mediador entre o capital internacional e a indústria.

A descoberta de novas formas de energia, de novos medicamentos e de novas tecnologias fortalecia o sentimento de que o ser humano era bastante capaz de inventar, aludindo a uma Belle Époche, carregada de otimismo e estabilidade duradoura. Todos os esforços dos países envolvidos pareciam recriar velhas rivalidades, e a deflagração de uma guerra entre qualquer uma dessas potências era algo possível. E nesse cenário o nacionalismo desses países tornou-se exacerbado. O serviço militar passou a ser obrigatório, recrutando jovens para as forças armadas. O resultado social disso era bastante visível, pois desse modo o exército influenciava na política e na sociedade de seus países. Soma-se a isso a construção e generalização de um conjunto de tradições que visavam fortalecer esse mesmo nacionalismo. Sendo assim cada Estado era ciente de seu papel na política mundial, e a rivalidade com relação a outras potências industrializadas aumentava a medida em que cada sociedade acreditava na sua superioridade com relação à história e política mundial.

Há que se considerar ainda, os conflitos já existentes, como por exemplo, a rivalidade entre França e Alemanha, após sua unificação em 1871, na guerra Franco-Prussiana, e a anexação da região da Alsácia e da Lorena. Tanto quanto, a disputa da mesma França, com a Inglaterra pelo Marrocos, em terras africanas.

O assassinato do príncipe herdeiro do trono Áustro-Húngaro desencadeou, como em efeito dominó, conflitos pelo território europeu. Novas alianças foram feitas, e colocaram-se de um lado, França, Inglaterra e Rússia, e de outro, a Alemanha e a Áustria-Hungria. Com frentes de batalha para o ocidente e o oriente, a Alemanha iniciou sua ofensiva pela Bélgica, desafiando a Inglaterra e a França, e depois teve que se ocupar com a Áustria e a Rússia.

Apesar da esperança de todos de que os conflitos durassem pouco, a guerra mostrou-se mais violenta do que o esperado, e as perdas humanas representavam o fim do sonho de um mundo de paz. A quantidade de soldados mortos, e a violência dos conflitos, principalmente nas trincheiras, enfatizavam a crueldade dos massacres, bem como suas técnicas. Foi exatamente nesse período que as “tecnologias para a morte”, ou seja, o desenvolvimento da indústria bélica contribuiu para todo esse processo.

Após anos de violência, era necessário, portanto, acordos de paz, a fim de colocar um basta naquela situação. Nesse sentido, antes do fim da guerra a Rússia já havia se retirado, e teve que dar conta das disputas internas surgidas com a Revolução de 1917, fato que obrigou Leon Trotsky a negociar com inimigos, no sentido de não anexação de territórios. Após inúmeros acontecimentos, dentre eles as reinvestidas alemãs, a Rússia se vê obrigada a aceitar o Tratado de Brest-Litovsk, que sem dúvida nenhuma, a deixara humilhada. Depois disso, o presidente norte-americano Wilson, apresentou no congresso americano um plano de paz mundial, que ia da abolição da diplomacia secreta, ou seja, serviços de espionagens, a criação de uma sociedade, um tipo de Liga das Nações.

Considerado por ingleses e franceses insuficientes para resolver os conflitos, os 14 pontos de Wilson, não reconheciam necessariamente os esforços desses países no conflito, bem como não garantiam que a Alemanha não voltaria a atacar seus rivais. Contudo, após esse episódio, reuniram-se em Paris, aos dezenove dias do mês de janeiro, representantes dos governos norte-americano, francês e inglês que discutiram os termos de uma paz imposta, e não negociada, sem a participação dos derrotados, e anunciaram o mundo o resultado: o Tratado de Versalhes. A Alemanha principal atingida pelo Tratado, foi obrigada a pagar altas indenizações, a devolver territórios anexados, e a se não acabar, ao menos diminuir sua potencialidade bélica, a custas de retaliações das outras potências.

Apesar de finalizada, a Primeira Grande Guerra Mundial ainda foi capaz de prolongar seus efeitos colaterais. A geografia européia havia sido alterada, a devastação econômica dos países envolvidos era visível, e os empréstimos norte-americanos, faziam com que a inflação aumentasse nesses países, tornando a fome e a miséria as únicas coisas realmente transversais a seus povos. O desemprego aumentou, os ex-combatentes retornaram a suas casas, e encontraram suas nações dilaceradas. O otimismo deu lugar ao pessimismo, o sonho ao pesadelo, e a rivalidade entre esses países não acabara, deixando claro que uma Segunda Grande Guerra Mundial ainda aconteceria.

SPINDEL, Arnaldo. O que é Socialismo. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1986.[1]

Mercolis Alexandre Ernandes[2]

À luz da I Internacional, o marco inicial do advento do socialismo científico foi à publicação do Manifesto do Partido Comunista, em meados de 1848. As principais idéias contidas neste documento partiram das reflexões de Karl Marx e Frederic Engels. Neste sentido, suas propostas caminham na direção de uma revolução proletária, intensificada pelo movimento de greve nas unidades fabris. Depois disso viria a Ditadura do Proletariado, no qual o Socialismo seria efetivamente instaurado. No projeto de Marx e Engels, estava presente a melhoria na educação dos trabalhadores, a representatividade partidária, e um período ditatorial curto. Divulgado mundialmente, o texto do manifesto, foi absorvido de diferentes formas. Ao chegar na Rússia, encontram em Bakunin, algumas divergências. Para boa parte dos trabalhadores russos não havia a necessidade de educação e organização das massas, nem o trabalho sob a conduta de um partido. Mas acreditava que umas elites revolucionárias, apoiadas pelos camponeses e pelos trabalhadores seriam capazes de detonar a revolução e atingir o poder.

Ao longo de 12 anos, trabalhadores do mundo inteiro discutiam suas condições de trabalho e como combater o crescente capitalismo. Reunidos em Paris, no evento chamado de Comuna de Paris, os trabalhadores não entraram num consenso a respeito dos caminhos a serem tomados em escala mundial. Foi também nessa situação que o Socialismo encontrou seu pior inimigo, gerado ali em seu próprio meio: o Anarquismo, que propunha uma passagem direta à uma sociedade sem Estado. Ao clarear 1876, foi decretado o fim da I Internacional cujas principais contribuições foram o sentimento de que socialismo implica em liberdade, e uma diminuição das concepções utópicas do socialismo.

Com o fracasso do I Internacional, franceses e ingleses não conseguem se articular de maneira satisfatória, ainda mais com a morte de Marx em 1883, Engels não apóia a reedição do Congresso Internacional de Trabalhadores, e desse modo, os franceses apresentaram um quadro de organização de trabalhadores, tendo de um lado marxistas franceses e sociais-democratas, geralmente de base ideológica francesa, e de outros reformistas franceses apoiado pelos sindicalistas ingleses, que realizaram congressos trabalhistas paralelos às reuniões do Congresso Internacional. Um ano depois, em Bruxelas, houve uma união dos grupos, dando abertura à II Internacional, na qual as principais discussões foram regidas pelas idéias de BERNSTEIN, ou seja, socialismo modernizado à luz do capitalismo; as dos MARXISTAS MODERADOS, em outras palavras a aplicação pura das teorias marxistas; e por fim, os MARXISTAS REVOLUCIONÁRIOS, cujos expoentes eram Lênin e Rosa Luxemburgo, que defendiam uma profunda transformação revolucionária.

No interior da II Internacional, os grupos de trabalhadores de maior representatividade passaram a se organizar em torno de concepções ideológicas próprias. Na Alemanha, a corrente lassaliana de origem burguesa, une-se à eisenachiana puramente marxista, porém aos moldes alemães, propõem estabelecer a social democracia. A partir dessa discussão abriram-se novos caminhos. Dentro da Social Democracia, um grupo minoritário ainda defendia a aplicação do marxismo puro, enquanto a maioria pedia a presença das principais idéias de Marx, unidas à representação parlamentar. Bernstein justificava essa fusão de pensamentos dizendo que Marx, estava obsoleto, e que o capitalismo não aprofundava as diferenças, propondo ainda liberdade para o indivíduo, sem precisar pela ditadura do proletariado.

Na França, em 1877 tem início o movimento socialista francês, com Jules Guesde, um reformista anarquista que, criticava o partido dos trabalhadores franceses, a ponto de fundar um novo, o partido dos trabalhadores revolucionários franceses. Entretanto, a Inglaterra, não era muito fã de Marx, sendo assim a opção foi o Socialismo Reformista, ou seja, Marx aplicado à sociedade, com a atuação do parlamento, que adotaria o modelo fabiano de sociedade, com reformas sociais via Poder Legislativo, bem como a supressão da propriedade privada.

Contudo, após anos de discussão em torno da organização dos trabalhadores em nível mundial, capitalismo e socialismo continuaram se enfrentando, no sentido de melhorar as condições de trabalho nas fábricas e indústrias do mundo todo.



[1] Trabalho apresentado ao Professor Dr. Protásio Langer, como uma das avaliações de História Contemporânea I, do Curso de História da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.

[2] Aluno do 4º ano da Graduação em História.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

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cara amiga

Talvez essa seja uma forma eficiente de nos comunicar, e ao mesmo tempo exercitarmos nossas mentes em torno de algumas questões.

O tempo é outro. Para todos nós. É outro, enquanto novo, e novo, na medida em que está nos proporcionando novas experiências, que dão novos sentidos. No Mestrado, a História enquanto ciência tem-se revelado muito pesada. Não que eu acredite nela, mas o ranço do marxismo mal interpretado ainda insiste em se tornar saboroso para algumas pessoas. Eles querem a verdade, mas dizem que estão atrás de uma aproximação do real. Estabelecem um jogo representado como uma guerra, que ao meu ver, quando muito, nos levará a lugar nenhum. Mas, de todo o modo, posto que aqui está, uma guerra cara. Para nós, e para eles.

Do outro lado, existe a fragmentação incontrolável das coisas. As que eram “sólidas”, por ora se revelam móveis. E enquanto se desmancham no ar, cada fragmento assume um significado, que juntos se transformam em fuligem, que quando me toca, preocupa. E nessa tempestade de idéias, por enquanto, ainda não encontrei nenhum lugar seguro, pelo qual eu possa caminhar livremente, embora algumas sensações tenham me deixado bastante confortável. Após a resolução de algumas questões absolutamente ambivalentes, tenho provado algumas ambigüidades, feito alguns bricolages, e traduzido isso tudo, na tentativa de entender o mundo diante de mim, e a mim diante do mundo. O meu, em particular, e este em função do todo. Acontece que aqui mora o meu problema. Nessa desreferencialização, me reterritorializo, num lugar carregado de novos significados. Que exige uma predisposição gigantesca para definir as fronteiras. E depois, na intersecção dessas, perceber. A percepção me enlouquece! Visto que, é preciso traduzir os símbolos, entender os signos e os significados, e ouvir as narrativas, e, talvez por meio desse conjunto de representações definir o meu lugar, para em seguida tentar ocupar um espaço.

a universidade ficou cinza

Há alguns dias fomos surpreendidos nos corredores da UFGD, por uma carta anônima que pedia a atenção dos acadêmicos do curso de História, para algumas considerações acerca do adesivo que está sendo vendido pelo CAHISD.

Num primeiro momento, dei bastante risada, pois parecia genial – alguém havia manifestado sua opinião e, provocado polêmica, que conseqüentemente geraria uma discussão. Mas, ao reler o texto, questionei-me sobre alguns pontos, talvez umas idéias fora do lugar, ou não – parafraseando Caê, onde tudo é relativo.

Mas de qualquer forma eu gostaria de dividir alguns desses questionamentos com vocês:

Nosso “companheiro”, afirma que a teoria (Evolucionismo Social) é profundamente etnocentrista e faz pesados julgamentos de valor (...), e critica o adesivo por também sugerir a sobreposição de culturas. Porém, ao escrever: “Nosso C.A. confeccionou um adesivo um tanto interessante para acadêmicos de um Curso de Ciências Humanas e, sobretudo de uma Universidade pública”, ele mesmo sobrepõe um sistema ao outro, no caso, público e privado, dando um grau de responsabilidade a mais para quem utiliza o Ensino Gratuito.

Nos avisa que o desenho do adesivo possui relação com o Evolucionismo Social, mas que ele não pode dizer que, essa foi à intenção de nossos representantes, e ainda lembra que seria melhor evitar o risco de algumas leituras equivocadas que o desenho pode e vai provocar. Observem aqui, a apropriação da realidade: “leituras equivocadas que o desenho pode e vai provocar”. Pode, pôde, mas daí afirmar que vai, é ter certeza demais, a não ser que o autor seja o executor do tempo, o “mestre dos magos”, ou a personificação da sabedoria, pois, momento depois afirma que, ao comprar o adesivo estaremos “abraçando alguns ideais um tanto que deselegantes e não condizentes para um acadêmico de História”. A pergunta que se faz aqui é: O que seria elegante ou condizente para um acadêmico de História? Talvez, seria elegante e condizente para um acadêmico de História, assinar o texto que escreveu nos fazendo lembrar que a ditadura acabou, e agora não precisamos mais nos esconder, ser anônimos ou usar heterônimo.

Percebemos que num outro momento, o autor se apropria do mito fundador do ocidente cristão, e assume o papel de herói civilizatório. Por três vezes, assim como Pedro foi avisado, ele nos adverte sobre as verdades. A saber: “mas vale saber que seria melhor evitar (...)”, “e fique sabendo VC QUE COMPRAR (...)”, “Bom, o tal adesivo mostra (...)”. O problema é que os argumentos são fracos, e os cristãos não precisam de mais um herói, já possuem Jesus Cristo, cuja figura é muito bem conhecida, ao contrário do autor, que nem sequer o nome nos informou.

E para mim, o pior de todos eles. Não direi que é plágio por que o conteúdo da Wikipédia é público, mas digo que é de bom tom, ao menos citar de onde se tira algumas informações para facilitar a vida do leitor, portanto, corrigindo: www.wikipedia.org.br, foi daqui que saíram as informações do Evolucionismo Social.

Apesar dos pesares, é instigante ver que isso está acontecendo. É interessante ver a discussão aflorar na comunidade acadêmica. Porém, é preciso um pouco mais de cautela ao deferir críticas ao trabalho dos outros. É preciso não tentar sobrepujar ninguém. Ter humildade e coragem. Ter clareza de onde se quer chegar com a discussão. É preciso considerar fatos, elementos, e dar sustentações ao que se diz.

A teoria do Evolucionismo Social existiu sim, e é aceita pela ciência. Vigorou pelo século XIX, e desde meados de 1950, é apenas citada como uma das fases do desenvolvimento do pensamento antropológico, mas é claro que, como qualquer pensamento ainda possui seus adeptos.

Não podemos confundir também, nossos problemas pessoais com os de interesse comum, como o autor parece julgar sua preocupação com o adesivo. NÃO. EU NÃO TIVE A MESMA IMPRESSÃO DO ADESIVO. Talvez, a polêmica e o Evolucionismo Social, atribuído á imagem, exista apenas na cabeça do autor. E também me recuso a acreditar que, em pleno século XXI, alguém ainda utilize os atalhos, de copiar e colar texto, para escrever. Assim fica mais fácil pensar. Não podemos esquecer ainda, de nossa formação positivista, cujos resquícios ainda nos perseguem, e por mais que tentamos superá-los, as imagens, as datas comemorativas, os heróis e os símbolos, permeiam nosso pensamento e nos colocam em xeque diante de idéias postas ao léu. Afinal se até o que é sólido desmancha no ar, imagina o que acontece com o que é efêmero!? Outro problema é que, ao escrevermos não dominamos mais o texto, e embora a experiência seja coletiva a apreensão dos significados é individual.

E, se a AÇÂO política almejada pelo autor, é essa, a de polemizar o aparentemente nem discutível por tanta simplicidade, ou a de valer-se de rancores pessoais por motivos que desconheço, para tentar chamar a atenção dos outros para um problema que só ele acredita que exista, também não! Não quero. Prefiro ficar na OBA OBA, que dá no mesmo, aliás com um pouco mais de diversão, o que não exclui a possibilidade de discutir melhor a sátira, o riso, ou as políticas culturais.

É importante também deixar claro que ainda não conheço o autor do texto, e por isso não estou defendendo nem um, nem o outro, só sei da existência da M.E.R.D.A.

Um historiador no cinema

Um lojista persa e um chaveiro mexicano. Estes são nossos personagens. Na agitada Los Angeles, palco dos acontecimentos, Paul Haggis nos leva por meio do longa CRASH – No limite, a lugares em que o domínio das diferenças é fundamental.

Os dois personagens são imigrantes, com experiências próprias em torno de suas origens. Ambos experimentam a discriminação, a intolerância, o desconforto, e a privação. Experimentações que os colocam como sujeitos de uma realidade vivida a partir de encontros desconcertantes, nos quais as partes da diferença, geralmente expressas como raça, classe, gênero etc., podem nem sempre ser colaborativas no intercâmbio de valores.

A negociação cultural ferve num caldeirão de sentidos que, nos revelam a inconstância e a liquidez das fronteiras, fazendo com que tempo e espaço sejam alterados na medida em que a realidade os questiona. O debate cultural quando posto no deslizamento proporcionado pelo prefixo pós, aponta mais para uma superação do moderno, do que uma continuidade com o mesmo, deixando bem claro o antes e o depois, o passado e o presente, o que está dentro ou fora. Porém, as negociações culturais têm-se reconfigurado e produzido hibridismos com olhares como os de um caleidoscópio, nos quais esses binarismos não funcionam mais, sendo necessário uma noção derridiana de diferença, que estabelece lugares de passagem, cujos significados são posicionais e relacionais. Estamos num “momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade”, assevera Homi Bhabha.

Nossos personagens são exemplos claros de negociações culturais conflituosas.

Numa terra estrangeira, a latinidade do chaveiro faz dele um indivíduo diferente. Fala inglês, possui endereço e emprego fixo, trabalha vários turnos para prover e proteger sua família, e por estes elementos ele é aceito. Mas, existem as marcas do passado, como uma tatuagem, traduzida como símbolo de uma condição social periférica, expressa no filme como gangster.

Neste mesmo território, após todos os acontecimentos do dia 11 de Setembro de 2001, vive um imigrante persa. O fato de ser imigrante persa é suficiente para torná-lo estrangeiro/diferente, porém mesmo assim ele é diferente. Na narrativa do filme, ele possui mais de um eu. O que ele conhece, e os que lhe deram: o de Osama, ou, quem sabe ainda, por uma confusão geográfica o de árabe.

De maneira singular, eles tentam viver dentro de uma sociedade marcada pela presença de vários outros. Uma sociedade que só os tolera dentro de suas diferenças, a partir do momento em que eles são portadores do conjunto de representações simbólicas que constituem a nação norte-americana.

Nesse sentido, passado e presente se reencontram. Para o chaveiro, o passado mexicano - marcado por uma relação de dependência econômica e fornecimento de mão-de-obra barata que desencadeou uma forte onda de imigração clandestina para os Estados Unidos, se encontra com a atual realidade norte-americana. Para o lojista, além da origem, a desconfiança gerada após o atentado ao World Trade Center, que classificou todos os estrangeiros como possíveis terroristas.

É nesse cenário que nossos personagens terão que dialogar culturalmente. Suas nacionalidades são cartões de visita. Eis outro encontro. O de identidades nacionais. Persa, mexicana e norte-americana, diante do estar em outro lugar. Fora de casa.

Longe de casa, a ambivalência – que é a capacidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria (BAUMAN, 1999, p.9), é experimentada como desordem, produzindo desconforto quando não conseguimos ler adequadamente a situação e optar por ações alternativas (ibidem).

Na contingência da busca por um lugar seguro, cada um tem e tenta dar para o outro um significado, uma classificação, uma nomeação. Estes significados são essenciais à cultura e podem fechar o indivíduo, mas abrir a pessoa, se considerarmos o pensamento de Maffesoli. Pessoalmente – de maneira aberta, o sujeito busca informações para fazer a tradução. Individualmente, o mesmo sujeito, concentra-se em optar entre as informações a serem traduzidas. Esse processo é particular quando do indivíduo, e pode ser coletivo quando da pessoa.

A resolução da ambivalência sugere ordem, distinção entre amigos e inimigos. Mas, e quando não conseguimos essa ordenação? As experiências que nossos personagens provaram enquanto imigrantes, discriminados, tolerados e diferentes não serviram como elementos de identificação entre eles.

Isso ocorre, porque eles provaram o desconforto de estar em um lugar estranho, longe um do outro. Cada um teve uma experiência, cada um deu sentido e forma, e traduziu de uma maneira particular, posicional e relacional. Enquanto o chaveiro provava a discriminação pelas palavras da esposa do promotor, o lojista persa percebia o peso da diferença, quando após seu estabelecimento ter sido assaltado, tentou comprar uma arma de fogo, e num diálogo truncado e conflituoso com o vendedor, em função do mau domínio da língua inglesa, foi chamado de Osama.

Num outro momento, ao chegar em casa, o chaveiro encontra sua filha assustada por ter ouvido um barulho semelhante ao de um tiro, como aquele, que os fizeram mudar de bairro, e que ele havia prometido que nunca mais a perturbaria.

Nesta Babel de sensações, eles tentam negociar, e terão que descobrir se são amigos ou inimigos.

O chaveiro mexicano foi chamado para trocar a fechadura da porta da loja do persa. Ele troca a fechadura – replace the lock, e na hora de trancar a porta, detecta que o problema está nela, e pondera: “what you need is a new door”. O persa insiste “fix the lock”; e o chaveiro reluta: “no no I replace the lock but what you need is a new door”. Na seqüência do diálogo, eles continuam não se entendendo, e a desconfiança aparece. O lojista dá a entender que se tratava de um golpe para lhe vender uma porta nova, e irritado com aquela situação, passa a usar adjetivos que questionam a conduta do chaveiro. Este, por sua vez, explode em vozes, sentidos e valores e recusa-se a continuar. O outro não foi classificado, a experiência de privação comum aos dois, fechou o indivíduo; o ponto do qual a negociação foi estabelecida ficou conflituoso. Eles se estranharam.

No momento do encontro, ou seja, na emergência dos interstícios, não se chegou a uma ambigüidade possível. Parece-nos claro, que o processo tenha ficado, por aquele instante, referenciado por elementos que não servem mais para explicar os pertencimentos. Como dialogar com Homi Bhabha, portanto, quando ele afirmar que:

É na emergência dos interstícios – a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação [nationness], o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados (BHABHA, 2003, p.20).

Então, por que não houve negociação? A pergunta pode ser mais bem respondida, se perguntarmos onde eles se encontravam naquele momento? Eles estavam no não-lugar. Um lugar simbólico que procura estabelecer uma relação de complementaridade entre dois pólos. Um espaço, entretanto, sem criatividade, permanente na ambivalência. Nesta, o que não é classificado torna-se estranho, portanto, sem possibilidade de interação. Para entender precisamos de um outro lugar, um lugar que dê conta das subjetividades, que abra a alteridade, e que ressignifique os símbolos. Precisamos do entre-lugar.

O entre-lugar, fornece o terreno perfeito para que as estratégias de subjetivação - singular ou coletiva dêem início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade (BHABHA, 2003, p. 20). É a partir da experiência subjetiva de contestação vivenciada por ambos ao mesmo tempo, que o diálogo acontece.

Na busca por um lugar seguro, formam-se novos sujeitos, portadores de várias vozes e significados. É esse sujeito polifônico e polissêmico que terá que negociar no momento do encontro com o outro já não tão diferente assim.

BILBIOGRAFIA

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar,199.

BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.

HALL, Stuart. A identidade cultual na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo horizonte: Ed. da UFMG, 2003.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

cocares - hibridização guarani

Embora alguns pesquisadores considerem as discussões acerca do hibridismo redundantes e banais, acreditamos que ainda há muito que dizer sobre o resultado de encontros e desencontros culturais. Neste sentido nossa reflexão se estende sobre a ressignificação dos cocares indígenas pela população Guarani do interior do Mato Grosso do Sul.

Em meados de 2005, trabalhávamos como pesquisador para o Laboratório de Estudos do Imaginário da Universidade de São Paulo, e nosso objetivo era por meio da análise interdisciplinar entender a vivência dos jovens indígenas da Reserva de Dourados. Habitualmente lidávamos com um grupo de jovens bastante heterogêneo, por eles mesmo denominados A.J.I. – Ação dos Jovens Indígenas. Neste mesmo ano, a A.J.I. foi convidada para participar de um Atyguasu na aldeia TeyKuê, em Caarapó, município vizinho de Dourados. Ao observar aquela assembléia, notamos que havia ali um grande número de lideranças, todas devidamente paramentadas para tal ocasião. Dentre todos os adornos existentes na indumentária Guarani, o que mais nos chamou atenção foi o cocar, um objeto usado por lideranças indígenas como um dos símbolos de autoridade religiosa e política. Os cocares estavam diferentes, variavam no tamanho, nas cores e nas formas; as penas haviam sumido junto com os pássaros depois da derrubada das matas para a implantação da agropecuária; e ao longo dos anos eles passaram por ressignificações que nos permitem analisá-los como elementos híbridos.

Com a conquista européia as populações indígenas ameríndias sentiram o peso do embate entre concepções diferentes de mundo. No aspecto religioso e na organização social, o ocidente cristão tentou civilizar essas populações, que precisaram resistir, cada uma ao seu modo, às frentes colonizadoras. Para os que escaparam da morte, a saída foi procurar novas formas de adaptação.

Na província de Mato Grosso, durante o período colonial, uma das principais medidas desagregadoras, teve início na primeira metade do século XIX, quando o governo propôs “aldear os índios que estivessem dispersos afim de misturá-los com a população local” (ALCÂNTARA, 2006, p. 47). A partir daí, foram vários os momentos de aproximação e conflito entre estas culturas, passando tanto pelas políticas da Companhia Mate Laranjeira, em 1895, quanto pela “Marcha para o Oeste” no início da década de 1940 (Op. Cit. P. 48). Entre este período, em 1925, foi criado o Posto Indígena Francisco Horta Barbosa, atualmente estabelecido entre Dourados e Itaporã. Ele configura-se como uma das aldeias mais populosas do país, e está a menos de cinco quilômetros do centro de Dourados. Muitos índios transitam entre estes espaços em busca de educação, emprego e mercadorias. Além da divisão geográfica entre os limites da reserva e do município, vivemos numa fronteira cultural carregada de símbolos traduzidos, num desajuste entre as concepções de tempo, de mundo, de história e de cultura; fazendo com que o tradicional e o moderno sejam o tempo todo repensados.

Nos termos estabelecidos por Homi Bhabha temos que:

“O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente (..)”(1998, p. 27),

e o passado, nesse encontro com o novo, passa a ser visto do lado de cá, e é traduzido a partir da fusão entre o reconhecimento parcial que a tradição outorga e os novos elementos disponíveis e, o reconstrói, dando novas significações aos códigos culturais. Essas novas significações, para nós se caracterizam como resultados híbridos. E é a partir destas trocas de experiências que queremos, nas “fronteiras do presente” entender a hibridização da cultura indígena. Entendemos hibridismo, do mesmo modo que CANCLINI postula, ou seja, a partir das diversas mesclas interculturais que o configuram, e que abrangem também, as fusões raciais até então limitadas ao termo “mestiçagem”; e as religiosas ou de movimentos simbólicos chamadas de “sincretismo” (1998, p. 19). Nas “fronteiras do presente” é que a tradição se torna uma forma parcial de identificação e desloca o debate, do centro da cultura para os interstícios. Falamos, portanto, de um lugar tão contingente quanto as próprias definições de tradição e modernidade. A partir deste lugar, do entre-lugar, retomamos a discussão dos cocares.

O entre-lugar, fornece o terreno para estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade (BHABHA, 1998, p. 20) O cocar é um símbolo tradicional, pensado e confeccionado de modo a representar a autoridade do indivíduo diante de sua comunidade. Tendo resistido ao longo dos anos como símbolo característico das populações indígenas, sua utilização na super-modernidade ainda revela tal autoridade na medida em que a sociedade envolvente, presa à visão do índio exótico, exige o uso do mesmo como elemento identificador. Colocar um cocar não faz do indivíduo um índio, ao mesmo tempo em que um índio sem cocar não é índio de verdade.

Os produtos naturais como: barbantes de algodão, fios vegetais e penas, com os quais geralmente os cocares são feitos, não são mais encontrados com facilidade, seja em função do desmatamento ocorrido na região durante a década de 1950, ou por leis ambientais. Todavia, a valor simbólico que ele possui levou os Guarani a procurarem novos materiais e formas de representá-lo. A estrutura natural pode ser substituída por um boné com a aba virada para cima; as penas podem ser imitações sintéticas, ou pequenas tiras de TNT, ou receber ainda um toque de charme com um belo trançado de crochê.

Nosso exemplo revela, de modo bem particular, como uma cultura indígena agiu de maneira polissêmica na ressignificação de um de seus símbolos. Estamos certos de que isso ocorre justamente na soma das partes da diferença, cujo resultado é novo, e quando visto do ponto de vista do presente, esta hibridação, ou seja, o “passado-presente” ressurge com criatividade, dando novos sentidos a velhas estruturas.

BIBLIOGRAFIA

ALCANTARA, Maria de Lourdes Beldi de. Jovens indígenas e lugares de pertencimentos. São Paulo: IPUSP/LABI/NIME, 2007.

BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 1998.

CEVASCO, Maria Elisa. Hibridismo Cultural e Globalização. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 131-138, jan.-jun. 2006.

SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Edusp, 1974.