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quinta-feira, 13 de setembro de 2007

cocares - hibridização guarani

Embora alguns pesquisadores considerem as discussões acerca do hibridismo redundantes e banais, acreditamos que ainda há muito que dizer sobre o resultado de encontros e desencontros culturais. Neste sentido nossa reflexão se estende sobre a ressignificação dos cocares indígenas pela população Guarani do interior do Mato Grosso do Sul.

Em meados de 2005, trabalhávamos como pesquisador para o Laboratório de Estudos do Imaginário da Universidade de São Paulo, e nosso objetivo era por meio da análise interdisciplinar entender a vivência dos jovens indígenas da Reserva de Dourados. Habitualmente lidávamos com um grupo de jovens bastante heterogêneo, por eles mesmo denominados A.J.I. – Ação dos Jovens Indígenas. Neste mesmo ano, a A.J.I. foi convidada para participar de um Atyguasu na aldeia TeyKuê, em Caarapó, município vizinho de Dourados. Ao observar aquela assembléia, notamos que havia ali um grande número de lideranças, todas devidamente paramentadas para tal ocasião. Dentre todos os adornos existentes na indumentária Guarani, o que mais nos chamou atenção foi o cocar, um objeto usado por lideranças indígenas como um dos símbolos de autoridade religiosa e política. Os cocares estavam diferentes, variavam no tamanho, nas cores e nas formas; as penas haviam sumido junto com os pássaros depois da derrubada das matas para a implantação da agropecuária; e ao longo dos anos eles passaram por ressignificações que nos permitem analisá-los como elementos híbridos.

Com a conquista européia as populações indígenas ameríndias sentiram o peso do embate entre concepções diferentes de mundo. No aspecto religioso e na organização social, o ocidente cristão tentou civilizar essas populações, que precisaram resistir, cada uma ao seu modo, às frentes colonizadoras. Para os que escaparam da morte, a saída foi procurar novas formas de adaptação.

Na província de Mato Grosso, durante o período colonial, uma das principais medidas desagregadoras, teve início na primeira metade do século XIX, quando o governo propôs “aldear os índios que estivessem dispersos afim de misturá-los com a população local” (ALCÂNTARA, 2006, p. 47). A partir daí, foram vários os momentos de aproximação e conflito entre estas culturas, passando tanto pelas políticas da Companhia Mate Laranjeira, em 1895, quanto pela “Marcha para o Oeste” no início da década de 1940 (Op. Cit. P. 48). Entre este período, em 1925, foi criado o Posto Indígena Francisco Horta Barbosa, atualmente estabelecido entre Dourados e Itaporã. Ele configura-se como uma das aldeias mais populosas do país, e está a menos de cinco quilômetros do centro de Dourados. Muitos índios transitam entre estes espaços em busca de educação, emprego e mercadorias. Além da divisão geográfica entre os limites da reserva e do município, vivemos numa fronteira cultural carregada de símbolos traduzidos, num desajuste entre as concepções de tempo, de mundo, de história e de cultura; fazendo com que o tradicional e o moderno sejam o tempo todo repensados.

Nos termos estabelecidos por Homi Bhabha temos que:

“O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente (..)”(1998, p. 27),

e o passado, nesse encontro com o novo, passa a ser visto do lado de cá, e é traduzido a partir da fusão entre o reconhecimento parcial que a tradição outorga e os novos elementos disponíveis e, o reconstrói, dando novas significações aos códigos culturais. Essas novas significações, para nós se caracterizam como resultados híbridos. E é a partir destas trocas de experiências que queremos, nas “fronteiras do presente” entender a hibridização da cultura indígena. Entendemos hibridismo, do mesmo modo que CANCLINI postula, ou seja, a partir das diversas mesclas interculturais que o configuram, e que abrangem também, as fusões raciais até então limitadas ao termo “mestiçagem”; e as religiosas ou de movimentos simbólicos chamadas de “sincretismo” (1998, p. 19). Nas “fronteiras do presente” é que a tradição se torna uma forma parcial de identificação e desloca o debate, do centro da cultura para os interstícios. Falamos, portanto, de um lugar tão contingente quanto as próprias definições de tradição e modernidade. A partir deste lugar, do entre-lugar, retomamos a discussão dos cocares.

O entre-lugar, fornece o terreno para estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade (BHABHA, 1998, p. 20) O cocar é um símbolo tradicional, pensado e confeccionado de modo a representar a autoridade do indivíduo diante de sua comunidade. Tendo resistido ao longo dos anos como símbolo característico das populações indígenas, sua utilização na super-modernidade ainda revela tal autoridade na medida em que a sociedade envolvente, presa à visão do índio exótico, exige o uso do mesmo como elemento identificador. Colocar um cocar não faz do indivíduo um índio, ao mesmo tempo em que um índio sem cocar não é índio de verdade.

Os produtos naturais como: barbantes de algodão, fios vegetais e penas, com os quais geralmente os cocares são feitos, não são mais encontrados com facilidade, seja em função do desmatamento ocorrido na região durante a década de 1950, ou por leis ambientais. Todavia, a valor simbólico que ele possui levou os Guarani a procurarem novos materiais e formas de representá-lo. A estrutura natural pode ser substituída por um boné com a aba virada para cima; as penas podem ser imitações sintéticas, ou pequenas tiras de TNT, ou receber ainda um toque de charme com um belo trançado de crochê.

Nosso exemplo revela, de modo bem particular, como uma cultura indígena agiu de maneira polissêmica na ressignificação de um de seus símbolos. Estamos certos de que isso ocorre justamente na soma das partes da diferença, cujo resultado é novo, e quando visto do ponto de vista do presente, esta hibridação, ou seja, o “passado-presente” ressurge com criatividade, dando novos sentidos a velhas estruturas.

BIBLIOGRAFIA

ALCANTARA, Maria de Lourdes Beldi de. Jovens indígenas e lugares de pertencimentos. São Paulo: IPUSP/LABI/NIME, 2007.

BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 1998.

CEVASCO, Maria Elisa. Hibridismo Cultural e Globalização. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 131-138, jan.-jun. 2006.

SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Edusp, 1974.

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