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quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Um historiador no cinema

Um lojista persa e um chaveiro mexicano. Estes são nossos personagens. Na agitada Los Angeles, palco dos acontecimentos, Paul Haggis nos leva por meio do longa CRASH – No limite, a lugares em que o domínio das diferenças é fundamental.

Os dois personagens são imigrantes, com experiências próprias em torno de suas origens. Ambos experimentam a discriminação, a intolerância, o desconforto, e a privação. Experimentações que os colocam como sujeitos de uma realidade vivida a partir de encontros desconcertantes, nos quais as partes da diferença, geralmente expressas como raça, classe, gênero etc., podem nem sempre ser colaborativas no intercâmbio de valores.

A negociação cultural ferve num caldeirão de sentidos que, nos revelam a inconstância e a liquidez das fronteiras, fazendo com que tempo e espaço sejam alterados na medida em que a realidade os questiona. O debate cultural quando posto no deslizamento proporcionado pelo prefixo pós, aponta mais para uma superação do moderno, do que uma continuidade com o mesmo, deixando bem claro o antes e o depois, o passado e o presente, o que está dentro ou fora. Porém, as negociações culturais têm-se reconfigurado e produzido hibridismos com olhares como os de um caleidoscópio, nos quais esses binarismos não funcionam mais, sendo necessário uma noção derridiana de diferença, que estabelece lugares de passagem, cujos significados são posicionais e relacionais. Estamos num “momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade”, assevera Homi Bhabha.

Nossos personagens são exemplos claros de negociações culturais conflituosas.

Numa terra estrangeira, a latinidade do chaveiro faz dele um indivíduo diferente. Fala inglês, possui endereço e emprego fixo, trabalha vários turnos para prover e proteger sua família, e por estes elementos ele é aceito. Mas, existem as marcas do passado, como uma tatuagem, traduzida como símbolo de uma condição social periférica, expressa no filme como gangster.

Neste mesmo território, após todos os acontecimentos do dia 11 de Setembro de 2001, vive um imigrante persa. O fato de ser imigrante persa é suficiente para torná-lo estrangeiro/diferente, porém mesmo assim ele é diferente. Na narrativa do filme, ele possui mais de um eu. O que ele conhece, e os que lhe deram: o de Osama, ou, quem sabe ainda, por uma confusão geográfica o de árabe.

De maneira singular, eles tentam viver dentro de uma sociedade marcada pela presença de vários outros. Uma sociedade que só os tolera dentro de suas diferenças, a partir do momento em que eles são portadores do conjunto de representações simbólicas que constituem a nação norte-americana.

Nesse sentido, passado e presente se reencontram. Para o chaveiro, o passado mexicano - marcado por uma relação de dependência econômica e fornecimento de mão-de-obra barata que desencadeou uma forte onda de imigração clandestina para os Estados Unidos, se encontra com a atual realidade norte-americana. Para o lojista, além da origem, a desconfiança gerada após o atentado ao World Trade Center, que classificou todos os estrangeiros como possíveis terroristas.

É nesse cenário que nossos personagens terão que dialogar culturalmente. Suas nacionalidades são cartões de visita. Eis outro encontro. O de identidades nacionais. Persa, mexicana e norte-americana, diante do estar em outro lugar. Fora de casa.

Longe de casa, a ambivalência – que é a capacidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria (BAUMAN, 1999, p.9), é experimentada como desordem, produzindo desconforto quando não conseguimos ler adequadamente a situação e optar por ações alternativas (ibidem).

Na contingência da busca por um lugar seguro, cada um tem e tenta dar para o outro um significado, uma classificação, uma nomeação. Estes significados são essenciais à cultura e podem fechar o indivíduo, mas abrir a pessoa, se considerarmos o pensamento de Maffesoli. Pessoalmente – de maneira aberta, o sujeito busca informações para fazer a tradução. Individualmente, o mesmo sujeito, concentra-se em optar entre as informações a serem traduzidas. Esse processo é particular quando do indivíduo, e pode ser coletivo quando da pessoa.

A resolução da ambivalência sugere ordem, distinção entre amigos e inimigos. Mas, e quando não conseguimos essa ordenação? As experiências que nossos personagens provaram enquanto imigrantes, discriminados, tolerados e diferentes não serviram como elementos de identificação entre eles.

Isso ocorre, porque eles provaram o desconforto de estar em um lugar estranho, longe um do outro. Cada um teve uma experiência, cada um deu sentido e forma, e traduziu de uma maneira particular, posicional e relacional. Enquanto o chaveiro provava a discriminação pelas palavras da esposa do promotor, o lojista persa percebia o peso da diferença, quando após seu estabelecimento ter sido assaltado, tentou comprar uma arma de fogo, e num diálogo truncado e conflituoso com o vendedor, em função do mau domínio da língua inglesa, foi chamado de Osama.

Num outro momento, ao chegar em casa, o chaveiro encontra sua filha assustada por ter ouvido um barulho semelhante ao de um tiro, como aquele, que os fizeram mudar de bairro, e que ele havia prometido que nunca mais a perturbaria.

Nesta Babel de sensações, eles tentam negociar, e terão que descobrir se são amigos ou inimigos.

O chaveiro mexicano foi chamado para trocar a fechadura da porta da loja do persa. Ele troca a fechadura – replace the lock, e na hora de trancar a porta, detecta que o problema está nela, e pondera: “what you need is a new door”. O persa insiste “fix the lock”; e o chaveiro reluta: “no no I replace the lock but what you need is a new door”. Na seqüência do diálogo, eles continuam não se entendendo, e a desconfiança aparece. O lojista dá a entender que se tratava de um golpe para lhe vender uma porta nova, e irritado com aquela situação, passa a usar adjetivos que questionam a conduta do chaveiro. Este, por sua vez, explode em vozes, sentidos e valores e recusa-se a continuar. O outro não foi classificado, a experiência de privação comum aos dois, fechou o indivíduo; o ponto do qual a negociação foi estabelecida ficou conflituoso. Eles se estranharam.

No momento do encontro, ou seja, na emergência dos interstícios, não se chegou a uma ambigüidade possível. Parece-nos claro, que o processo tenha ficado, por aquele instante, referenciado por elementos que não servem mais para explicar os pertencimentos. Como dialogar com Homi Bhabha, portanto, quando ele afirmar que:

É na emergência dos interstícios – a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação [nationness], o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados (BHABHA, 2003, p.20).

Então, por que não houve negociação? A pergunta pode ser mais bem respondida, se perguntarmos onde eles se encontravam naquele momento? Eles estavam no não-lugar. Um lugar simbólico que procura estabelecer uma relação de complementaridade entre dois pólos. Um espaço, entretanto, sem criatividade, permanente na ambivalência. Nesta, o que não é classificado torna-se estranho, portanto, sem possibilidade de interação. Para entender precisamos de um outro lugar, um lugar que dê conta das subjetividades, que abra a alteridade, e que ressignifique os símbolos. Precisamos do entre-lugar.

O entre-lugar, fornece o terreno perfeito para que as estratégias de subjetivação - singular ou coletiva dêem início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade (BHABHA, 2003, p. 20). É a partir da experiência subjetiva de contestação vivenciada por ambos ao mesmo tempo, que o diálogo acontece.

Na busca por um lugar seguro, formam-se novos sujeitos, portadores de várias vozes e significados. É esse sujeito polifônico e polissêmico que terá que negociar no momento do encontro com o outro já não tão diferente assim.

BILBIOGRAFIA

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar,199.

BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.

HALL, Stuart. A identidade cultual na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo horizonte: Ed. da UFMG, 2003.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

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